Por Igor Prado
Dois anos após a morte, e doze anos após o fim de sua carreira ficcional, Kurt Vonnegut será ressuscitado. A editora norte-americana Delacorte Press escolheu o mês de novembro para lançar o póstumo Look at the Birdie, coletânea de catorze contos inéditos do autor. No ano de 2006, ele relia seu réquiem literário em um artigo de tom confessional: “Escrevi livros. Um monte deles. Eu fiz tudo que deveria fazer. Posso ir pra casa agora?”. Não, Vonnegut, não pode. Se é na idéia de um homem que repousa a eternidade, sua morte é reduzida a leve sono. E você vai acordar.
Mestre em acobertar a ironia de seus escritos em uma doce camada de empatia por seus personagens, Kurt Vonnegut ainda é uma peça torta no quebra-cabeça dos estilos literários. Não é um escritor de ficção científica. Tampouco um reles pacifista que transforma o texto em panfletos. Já o alegado pós-modernismo autobiográfico de seus livros sempre apanhou, ao menos nos detalhes, para qualquer uma das entrevistas em que resgatava o episódio – e sempre resgatava.
O escritor presenciou um dos momentos mais aterrorizantes da Segunda Guerra Mundial – o bombardeio regado a fogo da cidade de Dresden, na Alemanha, retratado em Slaughterhouse Five, Matadouro 5 . Eu tinha quinze anos quando comprei e li a obra, no infame formato pocket da editora L&PM. A minha intenção, frente à estante de livros de uma banca de revistas, era levar ficção científica pra casa. Meu dedo repousava sobre títulos de Asimov. Mas ao passar os olhos sob a contracapa de Matadouro 5, e ler sob viagens no tempo e outros planetas, escolhi Vonnegut.
Boom. Com a imagem da cidade de Dresden em chamas, derreteu-se também minha concepção de escrita. Acostumado aos roteiros bem delineados e sólidos, me realizei com a leitura de um romance sem capítulos lógicos, sem começo-meio-fim, e em um palco onde protagonistas e figurantes trocavam constantemente de papel. É a marca maior de Vonnegut: uma liberdade na organização do texto que, em uma extensa bibliografia, encontrou mais erros que acertos. Mas que acertos.
O próprio Slaughterhouse Five é o maior exemplo. Muito mais que ficção científica. A cada página de leitura, os extraterrestres e o Planeta Tramalfadore do livro pareciam mais próximos da realidade. Tratando de problemas não de outro mundo, mas deste. Guerra, morte, genocídio. Vonnegut tratava de alguns dos temas mais pesados da história humana, com a beleza e o romantismo de um garoto de 15 anos- que, como eu, às vezes procurava no céu respostas fantásticas para problemas mundanos.
O robô e o humano
Foi meu trunfo não ter levado Asimov pra minha biblioteca, no dia de minha compra. Vonnegut elevou o nível de um livro com características de ficção científica para onde o primeiro, com seus robôs e racionalismo hermético, jamais conseguiu chegar. Com discursos tão diferentes, a minha surpresa e susto foram observar que, entre eles, existiam várias proximidades em suas biografias.
Possuíam os dois, raízes em inimigos históricos dos EUA. Vonnegut vinha de uma família germânica enquanto Asimov nascera na Rússia, mas serviram ao exército americano na Segunda Guerra Mundial. Ambos eram agnósticos, escolhendo o termo “humanista” como melhor denominação – os dois, aliás, presidiram a American Humanists Association. Compartilhavam, até, da honra de ter asteróides batizados em sua homenagem – 25399 Vonnegut e 5020 Asimov.
Mas por mais que os caminhos se cruzem, existe um abismo entre suas obras. Os alienígenas, as viagens no tempo e as bizarras armas secretas de destruição em massa (como o Gelo 9, de Cama de Gato) dos livros de Kurt Vonnegut eram meras alegorias para mensagens muito mais subjetivas. Em contraposição ao racionalismo tacanho de Asimov, que procurava responder todas as questões através de metáforas políticas baseadas no desenvolvimento científico, Vonnegut estranhamente jogava no campo oposto. A biografia, o pessoal das experiências traumáticas de guerra, se esparramava por suas páginas.
Sinais de cansaço
Franzino, fumante irremediável e de vida pessoal extremamente conturbada, Vonnegut conseguia despertar em mim a imagem de um escritor que sofria por digladiar diariamente um pessimismo e um amor incondicional pela raça humana. E os contrastes de tal fotografia ficam ainda mais fortes ao observarmos o que caminho que o pequeno homem de bigode trilhou guiado por suas palavras.
A esperança pelo homem, ainda que controverso em todas suas declarações por apegos a certos conceitos deterministas, está no Vonnegut ficcional, eternizado em seus livros. Já o pessimismo se encontra quando o autor de romances desce o salto de capa-dura e se localiza nas críticas políticas. Mais localizado no contemporâneo, em seus últimos anos foi ferrenho opositor do governo de Bush, principalmente em colaborações para a revista In These Times, da qual era editor sênior.
Eu não renego ou refuto a influência que um escritor exerce na opinião pública ao externar abertamente suas posições políticas. Mas no caso de Vonnegut, foi a pior escolha possível. Em 2005, ao ser entrevistado David Nason, do The Australian, disse admirar terroristas do Oriente Médio por “morrerem pelo que acreditam”. Controversa frase que, em uma ironia, indicava desconhecimento dos americanos em relação aos seus inimigos – e conseqüentemente, da razão do conflito. Obviamente, foi rechaçada pela crítica.
Mas ao final de uma conta incerta, o erro do Vonnegut ensaísta foi eleger Bush como mote e destinatário de suas palavras. Não por ser o ex-presidente norte-americano, mas por ser alguém. Abriu brecha para que toda sua obra fosse parafraseada em trovas políticas alheias. E aqui perdeu ele e seus fãs mais atenciosos, que viam o valor universal de seu trabalho diminuído ao situacional. Vide Michael Moore que, em seus discursos, vira e mexe citava e continua a citar trechos de livros do autor.
Kurt Vonnegut se despediu da ficção em 1997, com Timequake, Tremor de Tempo. A editora Delacorte Press ainda não divulgou maiores detalhes sobre quando os contos póstumos de Look at the Birdie foram escritos. Portanto, para os leitores, resta esperar ansiosamente os seis meses até o lançamento. Comigo, guardo a vontade inesperada de rever o Vonnegut dos meus 15 anos. Porque a alma do autor está lá. Quando era menos ideologia, e mais disposição filosófica. Oferecendo-me não respostas, mas perguntas. “So it goes”.
Fantástico!
Só conhecia o Kurt Vonnegut superficialmente. Mas depois desta recomendação bem articulada, irei à livraria amanhã. ;)
Que bom que vai ser lançado em português, porque boa parte das obras dele está fora de catálogo… Tive que rodar por muitos sebos e bibliotecas pra ler livros como Mother Night, Hocus Pocus, Welcome to the monkey house (de contos, como este novo) e o meu preferido, Galápagos.
A LPM lançou recentemente Matadouro 5 e Breakfast with champeons mas acho que vai parar nesses dois…
Nunca tive saco de ler ficção do Asimov… ele me parece muito cientista e pouco romancista… por outro lado adorei um livro dele de não-ficção, Escolha a Catástrofe.
Parabéns pelo blog.
Só conheço Vonnegut de nome. Mas a ideia de unir filosofia e/ou ficção científica, por exemplo, é bem interessante. Me interessei, aliás.
Parabéns pelo blog. Vou acompanhar sempre que possível.
livros assim nos concedem a licença mais cara: a de pensar.
gosto dos intervalos e das lacunas pra nós mesmos preenchermos e acharmos um sentido no que não parece ter começo, meio ou fim.
p.s: vi o blog na comunidade da ufpi. bom saber que ainda existem blogueiros sobreviventes.
= )
Boa, Igor. Parabéns! E que suas colaborações sejam freqüentes – com trema, pois tenho até 2012 pra mudar.
É que a maestria do blogueiro me fez curvar diante de um certo conjunto atômico Kurt Vonnegut, cujo nome é, de início, o único elétron que tenho ciência.
Parabéns pelo texto e muito agradecida pela recomendação ;)
Grande Igor!
Seu texto possui um grande mérito: desperta no leitor a vontade de conhecer a obra sobre a qual você está dissertando.
Foi o que aconteceu comingo, que nunca li nada de Voneggut, mas afirmo, sem querer fazer média, que agora entrou para minha lista de futuras leituras (que cacofonia!).
Como o Rafael disse, que suas contribuições sejam “freqüentes”. Com trema.
aahahuauha
Abraço!
Assino embaixo do comentário do Fernando. Gostei bastante do blog, quero sempre tá acompanhando… e teu texto me motivou msm a conhecer o ainda inexplorado Vonnegut… Valeu pela indicação!! :)
Na verdade não conheço nada de Vonnegut fora o que seu texto me diz. Mas posso dizer que ele me despertou a vontad de conehcer mais as obras do autor. E que suas contribuições sejam freqüentes. E com trema, só para criar uma cisão no blog.
Bem escrito, mas chato de ler!
DESCOBRI Vonnegut recentemente, ao ler um post de um diretor da serie LOST. Ele disse ter se inspirado em MATADOURO 5 para compor um dos episodios mais comentados da série.
Bem, MATADOURO 5 é arrebatador. Exatamente porque é sem fórmula, visceral, triste demais e não é piegas. Existe um fatalismo em cada página. Particularmente, há algum tempo tenho a mesma visão dos alienígenas do livro rsrs sobre o tempo. As coisas são. NÃO há livre-arbítrio. Esse elemento foi criado para dar um sentido (?) às coisas.
VONNEGUT não é unanimidade… ainda bem. Você pode admirar a forma, as nuances, ou o estilo.. mas creio que uma historia te ganha quando você está sintonizado com ela, de alguma maneira.
Esse autor é uma grata surpresa pra mim. Quando fui procurar seus livros descobri que ha uma boa procura, e é dificil encontrar algumas obras. No meu universo, ele não existia… e agora, parece que sempre esteve ali rsrs COISAS DA VIDA
Now that the jumpers like nowosci in doubtlessly, can not taking that Switzerland comes just four times Olympic advocate Simon Ammann, who won two gold medals at the Olympic Games 2002 in Salt Lake Town, and the result was repeated eight years later in Vancouver. Matrix year we won the Everyone Cup crystal ball., And the cheeriness he lacks however quelling in the Four Hills Tournament.
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