Por Rafael Cabral
Como é medíocre a eterna briga entre os escritores lusos José Saramago e Lobo Antunes. Aliás, mais que medíocre: vazia. Saiu há pouco na New Yorker um artigo de Peter Conrad por conta do lançamento nos Estados Unidos de Que farei quando tudo arde, de Antunes. Imagine você qual o foco do texto do crítico australiano. Claro, a rixa. Inovador.
O começo da troca de sopapos eu não sei bem quando se deu. Mas fica claro que as divergências aumentaram quando Saramago se tornou o primeiro escritor de língua portuguesa a ganhar o Prêmio Nobel, em 1998. A história já é clássica. Os jornalistas do Times, ao ligarem para Lobo Antunes pedindo por uma opinião sobre a premiação, não receberam mais que um longo silêncio. E tossidas nervosas. E mais silêncio. Por fim, alegando que a ligação estava ruim, Lobo Antunes bateu o telefone.
Os partidários de Lobo Antunes não cansam de apontar para os suecos que eles premiaram o gajo errado. Ao que os ferrenhos defensores do autor de Ensaio Sobre a Cegueira não respondem com mais do que o desdém. Inveja pura, dizem. Em troca, os ‘lobistas’ arremessam críticas à personalidade de Saramago. Soberba. Orgulho. Ego. As obras? Todas repletas de pseudo-universalismo fácil.
Falei de ‘partidários’ e não foi por acaso. Os fãs de um atacam principalmente a pessoa do outro. Não a obra. O que é isso senão a imagem dos partidos políticos de depois que se espatifou o Muro de Berlim? Não existem critérios para a discordância. Existe apenas a discordância. Ponto.
Formaram-se duas legendas de admiradores, cuja única preocupação parece ser enxotar a parte contrária e diminuir os trunfos do escritor rival. Pouco levando em conta as diferenças estéticas que, de fato, existem entre os dois. Existem e são claras. A palavra é de Conrad, livre e porcamente traduzido por mim:
Seu país, acanhado, pode não ser grande o suficiente para os dois homens, mas a partir de uma certa distância esse feudo dificilmente importa. Bons novelistas são únicos, o que os faz incomparáveis. Saramago é um mago do bem cujas ficções conseguem, com um sorriso, suspender a realidade. Lobo Antunes é mais como um exorcista, freneticamente lutando para expulsar o mal e para curar o corpo político.
As parábolas seculares de Saramago, que têm lugar principalmente em países não-identificados ou imaginários, facilmente flutuam para a universalidade. Lobo Antunes permanece obsessivamente local, preocupando-se com as doenças herdadas da história portuguesa e as deficiências de sua própria cultura.Ele é como o Stephen Dedalus de Joyce, jogando sobre si todas as desgraças da Irlanda como forma de se tornar uma consciência nacional, lembrando os seus recentemente europeizados e prósperos compatriotas de seu passado vergonhoso – um legado de culpa deixado tanto pela ditadura de António de Oliveira Salazar, que governou o país de 1932 até 1968, quanto pela brutalidade nos seus domínios coloniais na África.
Os portugueses oficialmente decidiram esquecer essa era de sufocante opressão, quando a Igreja Católica santificou as estruturas do Estado fascista. Lobo Antunes critica a covardia moral desses que toleraram a perseguição ou, silenciosamente, colaboraram com a polícia secreta de Salazar (…).
Um romance sempre revela o mundo dentro da cabeça de alguém. No caso de Lobo Antunes, esse mundo é do tamanho de um país – pequeno e marginal, talvez, mas repleto de vilania e vício, e tão coberto de feridas quanto uma enfermaria superlotada de hospital.
Pessoalmente, não faço parte das fileiras de nenhum dos dois. Se me fosse dado o direito ao voto em Portugal, mantendo a metáfora política, depositaria minha confiança em Miguel Esteves Cardoso – que, aliás, já foi candidato. Fora da metáfora. Um ano antes do meu nascimento, em 1987, pelo Partido Popular Monárquico. Mas sobre o autor de o O Amor é Fodido eu falo em outra ocasião.
E no caso de o meu delírio acabar em uma disputa de segundo turno entre o Nobel e o ‘Eterno Nobel’ (como chamam Lobo Antunes)? Sim, eu faria uso da prática moralmente duvidosa de escolher o ‘menos pior’. Pena que o voto é secreto. Seja em Portugal, seja no Brasil.
Secreto, mas eu revelo aqui. Falando baixinho. Mesmo temendo pelo apedrejamento do lado de lá, escolho Saramago. O homem costuma acertar quando desiste de tentar arrastar consciências para suas escolhas políticas duvidosas. Saramago é bom assim, como os partidos políticos modernos: vazio ideologicamente.
Memorial do Convento ou O Ano da Morte de Ricardo Reis são grandes livros. Assim como o mais recente, A Viagem do Elefante, que faz um belíssimo retrato da condição humana ao narrar o trajeto do elefante do título – Salomão, o nome – por países sem fim até chegar à Áustria, onde servirá de presente para o arquiduque Maximiliano.
Para Lobo Antunes, recomendo que continue a esperar o Nobel que teima em não vir. Enquanto espera, não faz mal algum aproveitar o cachê certamente polpudo que vai ganhar com sua participação na Feira Literária Internacional de Paraty de 2009. Onde, aliás, ele certamente será aplaudido de pé – como todos que lá falaram, falam e falarão.
Quanto a Saramago, o problema maior reside nas suas parábolas recheadas do mais primário didatismo, como este Ensaio Sobre a Cegueira que a versão cinematográfica consegue superar em mediocridade. É politicamente infantil. Moralista. Permeado da mais empoeirada grandiloqüência. Quando mira, intencionalmente, no tal “universalismo” que Conrad destaca positivamente, Saramago erra feio. E atinge a própria testa.
Leve, dinâmico e consistente. Um brinde à facilidade de escorrer tinta de Rafael Cabral. Assino embaixo, carimbo e despacho o conteúdo acima. Só me indisponho com os elogios às obras “O Ano da Morte de Ricardo Reis ” e “A Viagem do Elefante”. A primeira é pedante e sem verve. A segunda são três metros de remendo à vaidade do gajo.
Engraçado que o universalismo que Saramago adota e desbota, acaba por diminuir toda a perspectiva de visão do próprio autor. Termina sempre na soma do dois mais dois. Em que ação e reação humana são sempre previsíveis, ‘restando’ preencher o intervalo existente com texto bem escrito.
Contudo… maravilhosamente escrito, bem verdade.
Prefiro não opinar sobre a literatura de Saramago ou Antunes, mas sim sobre a maravilha que está o seu texto, Rafa. E parece que não sou só eu que acho isso.
“Gosto da forma como escreve”. Acho que vale a pena ser repetitiva, apesar de todo mundo ter dito algo do gênero. Não falei antes, mas também te acho corajoso, digo, é ousado ao expor seu ponto de vista. Admiro bastante, na verdade. Aconselho você a parar de crucificar os advogados e contratar um, vai precisar.
Rafael Cabral, como sempre, um mago da palavra. Não um operário, nunca um escravo, sempre um artesão. Saramago aqui por estas bandas ganharia pela popularidade, mesmo que não necessariamente pela obra. De mais a mais, é um debate inútil sobre qual a melhor obra. É como escolher entre um DaVinci e um Michellangelo: questão de gosto, mais do que de valor, diferente do que muitos intelectuais empolados gostariam de fazer crer.
Mago da palavra é complicado, hein. Vamos parar de rasgar seda aí.
Deem o cargo para o moço.
Um artífice da caneta.
Ainda não li Lobo Antunes. De Saramago, não tenho nada a reclamar. E não achei o Ensaio sobre a cegueira medíocre. É um dos grandes temas da literatura, até que ponto o homem deixa de ser humano, e o que é preciso para que isso aconteça. Saramago mostra que é preciso muito pouco.
Agora, os cegos não devem ter gostado nada do livro…
O filme, não vi e não gostei. Não é possível que, em duas horas, o longo caminho que Saramago cria entre o humano e o homem-animal seja percorrido satisfatoriamente.
Obviedades fora, ou seja, a diferença de estilo, os dois são claramente muito bons naquilo que fazem. Mas para mim hoje o mundo divava e não acompanha a rapidez com que recebe as informações, portanto, pendo: atualmente, neste século, é mais plausívele e divertida a literatura próxima do fantástico, Saramago, além de ele saber usar a sutileza com grande sabedoria, pois seu fantático é cheio de verdades contadas de uma maneira leve e curiosa.